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"Democracia em queda"


Artigo de opinião de Carlos Fiolhais assinado no "Público", a 3 de setembro


«Uma alteração legislativa que acaba de ser publicada pela calada, com a complacência do Presidente da República, após o PS ter apoiado uma proposta do PSD na Assembleia da República, veio limitar a participação dos movimentos independentes nas próximas eleições autárquicas, daqui a pouco mais de um ano. Os dois maiores partidos nacionais, nesta sua tentativa de monopolização da democracia, estão de facto a prejudicá-la, alienando cada vez mais o eleitorado.


A referida alteração impede os movimentos de cidadãos de concorrerem com a mesma designação e símbolo à Câmara Municipal e à Assembleia Municipal, por um lado, e às Assembleias de Freguesia, por outro. Além disso, arvorando-se “donos” das palavras, PSD e PS decidiram proibir o uso das palavras “partido” ou “coligação” por esses grupos. Não percebo por que razão, por exemplo, o Porto não pode ter, como tem, um movimento cívico chamado “Rui Moreira: Porto, o nosso partido” ou por que razão movimentos de cidadãos não se possam coligar entre si ou com partidos. Trata-se de uma lei dirigida principalmente a Rui Moreira, cujo movimento conseguiu, em 2013, 39% dos votos e, em 2017, 45% dos votos, alcançando a maioria absoluta. De acordo com a nova legislação, esse movimento, se quiser agora voltar a concorrer às freguesias do Porto, terá de se redesignar para cada uma das freguesias: “Campanhã, o meu *” ou “Paranhos, o meu *” (está um * para a palavra proibida). Não lembraria ao diabo, mas lembrou ao PSD e ao PS.


Em resposta, o Presidente da Câmara do Porto desafiou Rui Rio a concorrer ao Porto, “a solo ou em coligação com o Chega ou com o PS” (Expresso, 27/8). A avaliar pelo resultado das últimas eleições autárquicas, o PSD e o PS juntos não chegariam para o derrubar, pois o primeiro teve 10% e o segundo 29%. Nem com o Chega chegaria… A menos que este cresça muito: com a democracia em queda, admira-me que os velhos partidos se admirem com o crescimento do Chega.


Moreira é, de facto, um dos poucos líderes independentes que vão resistindo ao que se pode chamar partidocracia, ou asfixia da democracia pelos partidos. Os partidos são parte essencial da democracia, mas esta não se esgota de modo nenhum neles. Das poucas vezes em que Moreira falou em nome do Porto, fosse para enfrentar a TAP ou a DGS, revelou enorme força. Ele representa uma cidade onde, a 24 de Agosto de 1820, fez agora 200 anos, nasceu um movimento que pugnava por maior cidadania e liberdade em todo o país. Em particular, pretendia “levar a redenção aos cativos lisbonenses".


Mas não foi só no Porto que houve candidaturas independentes vencedoras. Apesar da sua condenação pela justiça, Isaltino Morais, obteve 42%, contra o PSD e o PS. Tem legitimidade para criticar a Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP), liderada pelo socialista Manuel Machado (presidente da Câmara de Coimbra), que ficou quieta e muda perante uma alteração que lesa a democracia. “A ANMP não serve para nada”, disse Isaltino. De facto, as posições que ela tem assumido quanto à descentralização ou à regionalização são demasiado passivas. O governo central em Lisboa não quer, de facto, abdicar do seu poder, mas desfruta para isso de cumplicidades regionais.


Outras câmaras lideradas por independentes são Vila Nova da Cerveira (58% dos votos), Anadia (56%), Vila do Conde (48%), Portalegre (32%), embora nos dois primeiros casos tenha havido apoio de partidos e nos dois segundos os independentes fossem dissidentes partidários. No conjunto do país, os grupos de cidadãos ganharam 17 câmaras. Nalguns casos, como em Coimbra, um movimento independente — o “Somos Coimbra” — é a oposição, pretendendo ganhar a Câmara. Com o recente golpe do PSD e do PS, que parece contrariar a Constituição (artigo 113.º-3b), torna-se mais difícil a tarefa dos cidadãos que se mobilizam pelas suas terras, que além do mais são alvo de discriminação fiscal. O presidente da Associação dos Movimentos Autárquicos Independentes resumiu: “Os candidatos dos partidos jogam com melhores botas, os partidos fazem as regras e nomeiam o árbitro e o Estado é o sponsor.”


Se Marcelo Rebelo de Sousa não está distraído, como não pode nem deve estar, o que ele fez foi contentar a sua base de apoio, o Bloco Central. Não posso por isso votar nele.»


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